
Estabelecimentos gastronômicos mais procurados
Locais de interesse mais visitados
Desculpe, não há resultados para a sua pesquisa. Tente novamente!
Adicionar evento ao calendário
O mundo muda, a Europa, o país e a nossa rua. Sobretudo se uma das nossas ruas for as Portas de Santo Antão, atrás da Avenida da Liberdade, Lisboa, que já teve tantas vidas no último século e ainda não descansa. Mas o número 23 parece contrariar o novo que sempre vem — não com a arrogância da idade, mas antes com a gentileza do que é familiar. Em breve, o espaço será alargado ao segundo andar do prédio: vai mudar para que tudo continue igual. Há quase 90 anos que, ao balcão ou à mesa, o Gambrinus é uma casa de serviço atencioso e personalizado, com a cerimónia e espetáculo que parecem de outros tempos.
“Há dez anos eu pensava, este serviço qualquer dia vai acabar. Hoje tenho a certeza que é para continuar”, diz Paulo Pereira, o chefe de sala do Gambrinus — ou como ainda se diz nesta casa, o chefe de mesa. Chegou para trabalhar aqui há 30 anos, numa altura em que o serviço à inglesa indireto tinha caído em desuso fora destas paredes — já poucos despinhavam o peixe no guéridon, uma mesa de apoio perto da mesa do cliente, ou espremiam o limão ao momento, com uma curiosa tenaz com um filtro embutido, e ninguém executava o café de balão.
Lisboa estava a receber outras influências, também com qualidade, mas com um serviço mais invisível durante a refeição. A confirmação de que um serviço de sala atencioso, personalizado e (porque não dizê-lo?) performático faz sentido chegou mais recentemente, com todos os telemóveis que saem do bolso para filmar os empratamentos feitos à frente do cliente, como quem regista um espetáculo. “E se alguém pede um crepe Suzette, é certo que a sala toda vai pedir”, continua Paulo Pereira. Os crepes flambeados ao vivo, mergulhados na calda de laranja e Cointreau, e empratados aos triângulos, a apontar para o monograma do Gambrinus no prato, são a definição de luxo — além de sintetizarem bem dois grandes fascínios humanos: fogo e açúcar.
Este é protocolo mantido desde 1964, quando os pais dos atuais sócios compraram o Gambrinus e deram início ao restaurante afamado, frequentado pela elite em família ou para fechar negócios, pelos corretores e funcionários da bolsa nos áureos 1980 e por artistas com algum ou com pouco dinheiro — nos dias de escassez comiam-se croquetes e uma imperial e lembravam-se as noites de bifes ou lagostins.
Houve, porém, Gambrinus antes dos anos 60. Apenas com entrada pelas Portas de Santo Antão, foi fundado em 1936 por Hans Schwitalla para ser uma charcutaria e cervejaria de influência alemã. Em memória desses primeiros tempos mantém-se o clássico da cozinha germânica à quinta: Eisbein com chucrute. Com a entrada dos sócios galegos nos anos 60, o Gambrinus ganhou as salas interiores com os seus materiais nobres — as madeiras portuguesas, o couro, o mármore de Estremoz no chão e o granito da lareira — pela obra de arquitetura de Maurício Vasconcelos. Os vitrais e a tapeçaria de Portalegre a todo o comprimento de uma das salas foram desenhados pelo pintor Sá Nogueira, são a beleza em cima do conforto e um exemplo da relação próxima entre a arte e alguns espaços comerciais da época.
Desde então, mudou talvez a cor da alcatifa e das fardas dos empregados de sala — antes verdes agora bordô. Estas cores vão voltar ao original com as obras que se preparam para alargar o espaço de 120 para cerca de 190 lugares, ganhando-se uma sala no piso superior e um elevador, além de uma renovação na cozinha e áreas de trabalho. Estão para breve, ainda sem data de início ou fim, mas não vão mudar a estética ou o serviço que torna esta casa um clássico, promete Paulo Pereira, “até porque os nossos clientes antigos não gostam de grandes alterações”.
Embora as salas do Gambrinus continuem a parecer uma cápsula do tempo, alguma coisa mudou nos últimos 90 anos. “Havia muito uma vivência ligada ao fumo — aos cigarros, à cigarrilha, aos charutos. Quando à 1h20 ouvia um cliente pedir para acender um charuto, já sabia que ia sair pelo menos meia hora mais tarde”, Paulo Pereira lembra, a rir, o tempo em que fechavam à 1h30. O serviço de sala tinha de saber cortar e acender o charuto. Agora, uma data de corta-charutos foi para o lixo e já não se acendem cigarros uns nos outros, tarde fora, como se a barra do Gambrinus fosse um escritório.
“Havia um médico otorrino que tinha aqui um livro de receitas, passava cá mais tempo do que no hospital ou em casa. Recebia muitas encomendas e a morada que dava era a do Gambrinus”, recorda o chefe de mesa. Continua a haver quem passe aqui algum tempo, quem venha todas as semanas (embora já não haja mesas reservadas para toda a semana) e os de sempre misturam-se com turistas ou clientes jovens e curiosos, fascinados com a epítome da classe lisboeta de que sempre ouviram falar.
“Algumas pessoas vêm com o trabalho de casa feito, já leram, sabem perfeitamente o que pedir. Mas muita gente não e sei que há coisas que vou sugerir: uma pessoa que peça aqui um peixe no forno tipicamente português, fresquíssimo, tem a probabilidade de 90% de sair satisfeito”, aplica Paulo a matemática, avança com multiplicações: “Temos a possibilidade de pedir tudo personalizado à cozinha. Só temos o fillet Gambrinus [com molho de cogumelos] na carta, mas podemos fazer à portuguesa, com roquefort, pode ser meio fillet… e depois entramos no ponto da carne e no tipo de batata”.
Na confeção, na qualidade do produto e neste atendimento dedicado se vê o luxo do Gambrinus. Na barra — ou mesmo nas mesas, quando esta está cheia — há uma versão mais rápida ou simplesmente mais modesta desta vivência, com os croquetes, as sandes de rosbife ou o prego e as sempre indispensáveis torradas de pão de centeio com manteiga ou presunto. Como diz Paulo Pereira, aqui o cliente pode proteger-se: não precisa de gastar 500 euros, pode gastar dez, e será sempre atendido com a mesma disposição. “O que interessa é que se sinta bem. Isto foi algo que nos foi passado desde aquela geração, muito trabalhadora, que comprou o Gambrinus em 1964”, diz Paulo Pereira.
Esta escola de geração para geração continua, é um orgulho para estudantes da escola da hotelaria vir trabalhar ou estagiar para o Gambrinus — nota Paulo Pereira que todos pisa estas alcatifas como quem pisa um palco. Enquanto o cliente procurar sentir-se especial, há espetáculo.
Gambrinus. Rua das Portas de Santo Antão, 23, Lisboa. Todos os dias das 12h às 00h. Telefone: 213 421 466