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O sino da igreja de São Gonçalo toca de meia em meia hora. Ao domingo há missa e às quartas e sábados surge a feira junto ao Mercado Municipal. Amarante é feita de rituais, não se conformando, contudo, na mesmice de sempre.
A cidade banhada pelo Tâmega é rica em lendas casamenteiras, histórias de resistência e movimentos vanguardistas. Não gosta de parar quieta, mas também não gosta de dar um passo maior do que a perna. “Felizmente temos evoluído sem confusão”, diz Margarida, orgulhosa amarantina e funcionária há mais de duas décadas na Casa da Calçada.
O edifício quinhentista acompanhou a cidade em todas as suas vitórias e agonias. Foi residência aristocrática, serviu de base militar durante os 14 dias de resistência às invasões napoleónicas, renasceu em 2001 como hotel de charme, entrou num período de hibernação, e despertou novamente em 2025, de cara lavada.
Foi Margarida, responsável de receção, que se encargou do gesto mais difícil: fechar a porta da Casa da Calçada em 2023, antes de o edifício entrar em obras profundas, num processo que viria a durar dois anos e a custar 15 milhões de euros. Depois de reaberta a porta, em abril deste ano, já não mais a Casa da Calçada era a mesma. Quer dizer, pelo menos não do ponto vista decorativo e do projeto gastronómico e de bem-estar. Quanto ao resto, que é como quem diz, charme, trato amigável e brio amarantino, nada mudou.
Da casa antiga, além da icónica fachada amarelo quente, ficou apenas a sala de estar que outrora fora da família de António Lago Cerqueira, responsável por plantar as primeiras vinhas da propriedade. Tudo o resto foi amplamente remodelado, para responder às necessidades do hóspede do século XXI.
De 30, passaram a haver 35 quartos, todos com linhas minimalistas em tons brancos e beges, que marcam um corte radical com os adornos barrocos do passado. A decoração teve a assinatura de Pilar Paiva de Sousa, que trouxe para o edifício, entre outros detalhes de bom gosto, como os estuques de Iva Viana e os quadros em macramé da Oficina 166.
O projeto arquitetónico ficou a cargo de Pedro Guimarães que, para além da remodelação do edifício, desenhou um SPA que se confunde com a paisagem e que oferece massagens de assinatura e um circuito de bem-estar com sauna, banho turco e fonte de gelo. Tudo isto é exclusivo para hóspedes, ao contrário do serviço de restauração.
No Canto Redondo servem-se pratos de receituário tradicional, no À Margem snacks ligeiros e no Ciao Tílias há comida italiana e pizzas como proposta principal. Os espaços são da responsabilidade do chef italo-argentino Emiliano Savio, até agora ocupado a liderar a cozinha do Real by Casa da Calçada, no Porto.
Mas a joia da coroa é o Largo do Paço, restaurante de fine-dining por onde passaram os chefes José Cordeiro, Ricardo Costa, Vítor Matos, André Silva e Tiago Bonito e que agora é comandado por Francisco Quintas. “Há toda uma história infinita e grandes nomes por trás do Largo do Paço. É um projeto que diz muito a muita gente”, salienta o chef de 26 anos, que não é de todo um estreante nestas paisagens.
Aqui estagiou, ainda adolescente, com o chef Tiago Bonito, com quem mantém uma relação de amizade “gigante”: “Falamos quase todas as semanas”. Depois, lançou-se pelo mundo: Reino Unido, Bélgica, Países Baixos e França foram essenciais para apurar a técnica, o gosto e alargar sabores. Novamente em Portugal, agarrou no 2 Monkeys, em Lisboa, e fê-lo tão bem que isso lhe valeu distinções que nenhum outro chef da sua idade ganhara até então.
Em 2024, largou o restaurante onde partilhava a cozinha com Vítor Matos, e aproveitou o tempo livre para viajar pela Tailândia. É nesta fase que surge o convite da Casa da Calçada para chefiar o Largo do Paço, desafio que aceitou sem pestanejar. “Tenho dúvidas, mas não tenho medos”. A perfeição, diz Francisco Quintas, é um caminho sem fim e ele está aqui para o trilhar.
A experiência no restaurante gastronómico da Casa da Calçada é o reflexo da personalidade de Francisco Quintas e daquilo que ele acredita ser a cozinha de autor: um ofício de responsabilidade, porém, divertido. Isso nota-se, desde logo, na descontração da equipa de sala, atenta sem ser espartana, e na playlist escolhida para acompanhar a refeição: de Cesária Évora a Dino D’Santiago, Tim Maia a Capitão Fausto, Khruangbin a Rui Veloso, há um propósito na sequência de cada canção. Aqui não corremos o risco de enjoar com jazz de elevador, embora às vezes a música rivalize a atenção com o prato.
A tensão é propositada. Francisco gosta de brincar com as expetativas e de fugir ao previsível, o que neste nível de cozinha pode ser um risco. “Gosto de criar estímulos”, admite o chef nascido em Miranda do Corvo, que se afirma cozinheiro do mundo. “Nunca me fixei em Portugal e isso caracteriza aquilo que eu faço. A minha cozinha não é tradicional, é do mundo”.
Ao cliente é pedido que baixe a guarda, que entre de mente aberta no jogo, para se desafiar a si mesmo. O desafio começa com uma Sopa de Letras, pousada em cima da mesa, com vários ingredientes escritos aleatoriamente. “É uma brincadeira que estimula e promove o diálogo entre as pessoas”. A cada prato, o cliente vai rasurando os elementos que o compõem. Até hoje, ainda ninguém acertou em todos os ingredientes e se no menu de 13 momentos (€140) há rasteiras, no de 15 (€160) tudo o que aparece no papel, aparece no menu.
Depois, é só deixar-se levar pela curva da narrativa. O menu começa suave, com os primeiros snacks, de onde se destaca a tartelete de brócolos, delicada como um jardim de primavera e um piscar de olho à estética do amigo Tiago Bonito. Vai progredindo com a gamba violeta, servida na cozinha e interpretada como uma gamba à guilho, a lembrar tardes de sol numa esplanada.
O pão de massa mãe e o brioche com flor de sal, acompanhados com diferentes manteigas e azeite trasmontano, trazem o conforto de casa para a mesa e o tomate cherry e coração de boi, subtis e desconstruídos até ao tutano, baralham-nos os sentidos. Talvez seja este o prato que melhor demonstra a predisposição de Francisco Quintas em usar da sinestesia e da ilusão para gerar espanto.
Lírio dos Açores, enguia fumada – visualmente serena como uma magnólia – e o pregado com manteiga noisette fazem o crescendo para os titãs da noite: o tamboril em salmoura com citrinos, funcho, sumo de cenoura, óleo de endro, mexilhão e um molho feito com os fígados do peixe é um estrondo laranja no nariz e na boca; a moleja caramelizada e fumada com carabineiro é uma dança de contrastes sexy, avolumada pela presença do alho negro e da noz macadâmia; e o pombo com ruibarbo põe-nos a cabeça na Ásia.
No epílogo, duas sobremesas: primeiro a mais intensa, composta por três variedades de morangos, mousse de chocolate branco assado e telhas crocantes de hibisco; e depois o gengibre e citrinos, a deixar a boca fresca e uma sensação de leveza que nos faz esquecer as mais de três horas à mesa. “Gosto de pensar no menu como um crescendo e de acabar de uma maneira fresca, para o cliente não se sentir pesado”, explica Francisco Quintas.
Harmonia e equilíbrio são atributos dos quais não prescinde. “Não acredito que o menu tenha de ser supercarregado o tempo todo. Cada prato tem que trazer sempre mais um bocadinho à refeição, mas sempre de forma harmoniosa”. O pairing de vinhos, selecionado por João Dória, mais focado na continuação do que no contraste, é uma extensão da cozinha: afinado, desafiante, subtil e sem estridências.
A equipa está oleada, agora só faltam os prémios. Se eles vierem, diz Francisco Quintas, trarão mais adrenalina e responsabilidade, mas sem nunca estragar a diversão. “A cozinha é isto e é isto que me move”. Ao fundo, Tim Maia canta, no caminho do bem.
Casa da Calçada Relais & Châteaux. Largo do Paço 6, Amarante. Telefone: 255 410 830. Estadia a partir dos €250 a noite | Largo do Paço: Quarta a sábado, 19h30 – 23h. A partir de €130 (pairing de vinhos a partir de €70).
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