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Sentimos-lhe o aroma antes mesmo de o vermos: um cheiro doce, ligeiramente fermentado, quase alcoólico que paira denso no ar. É o sinal que chegou o tempo do processamento da cana-de-açúcar na Madeira. Por toda a ilha, nos engenhos, destilarias e nas fábricas de mel de cana, montanhas de cana-de-açúcar são esmagadas e transformadas, dando continuidade a uma tradição com mais de 600 anos.
A cana-de-açúcar é originária da Papua-Nova Guiné. Foi trazida para o Mediterrâneo por comerciantes árabes por volta do século XIII. No início do século XV, o Infante Dom Henrique ordenou que o novo ingrediente fosse transplantado da Sicília para a Madeira. A planta adaptou-se bem e a ilha tornou-se o local mais importante do mundo na produção de açúcar.
Menos de um século depois, seria ultrapassada pelo Brasil, mas a continuou a ser cultivada na ilha, tendo quase parado durante o século XVII, à medida que os agricultores passaram a dedicar-se ao cultivo da videira, voltando a ganhar alguma expressão nos séculos XIX e XX, embora principalmente para consumo interno.
Na Madeira, o primeiro passo na transformação da cana-de-açúcar não acontece nos engenhos, mas nos íngremes socalcos da ilha. É aqui que cresce a planta em canaviais densos, normalmente virados ao mar e às muito ventosas estradas da ilha.
“É um trabalho duro. Os miúdos não o querem fazer,” explica João Mendonça, um apanhador de cana-de-açúcar nos arredores de Porto da Cruz, na costa norte da ilha. João é alto, de olhos azul-claro, e está a ceifar as bases dos talos da cana servindo-se de uma gadanha. Os seus dois colegas pegam na cana-de-açúcar acabada de cortar, partem-na e descartam os rebentos tenros e folhosos num monte, deitando os talos grossos e lenhosos noutro.
“Foi com o meu pai que aprendi a fazer isto! Faço-o há 30 anos,” conta-nos João. Ele explica-nos que na Madeira, a cana-de-açúcar só pode ser apanhada uma vez por ano, entre abril e maio. Acrescenta que o preço desta matéria prima esteja no pico mais alto de sempre — os subsídios do governo fazem com que este produto se venda pelo dobro do valor que se cobrava há cinco anos — e há gente disposta a dedicar-se à tarefa árdua. “No Brasil, têm máquinas que fazem este trabalho. Aqui, temos de fazer tudo à mão!” Acrescenta Rui Nóbrega, um dos colegas de João.
A equipa acaba de terminar um canavial e faz uma breve pausa. João puxa de uma garrafa de plástico de quatro litros com vinho seco, um tipo de vinho local de tom rosado. Partilha o copo para uma rápida bebida e, quase de imediato, o grupo avança para o canavial seguinte — o último dia de trabalho na destilaria está a chegar, é necessário que toda a cana seja colhida até lá.
Um pouco mais abaixo, nos Engenhos do Norte, em Porto da Cruz, o trabalho segue a bom ritmo. Fundado em 1927, numa língua de terra banhada pelo Atlântico, o engenho e destilaria — um de cinco na ilha— transforma os talos de cana-de-açúcar em garrafas de álcool.
À frente do engenho, uma fila de camiões carregados de cana-de-açúcar transfigura a aldeia pacata. “Diferentes qualidades de cana produzem diferentes tipos de rum”, explica Carla Basílio, responsável pela comunicação dos Engenhos do Norte. Alguns camiões trazem talos roxos com a espessura de um braço de criança. É esta a variedade mais comum na ilha, aquela que fornece mais líquido e que é mais macia, facilitando o processo de transformação — enquanto outros transportam talos finos, castanhos, de aspeto frágil.
Os camiões são pesados antes de descarregarem a mercadoria num dos lados do engenho. A partir daqui, a cana-de-açúcar é levantada por um braço mecânico e introduzida no interior da destilaria para ser processada.
“Este engenho funciona dois meses por ano”, explica-nos Carla, por entre o ruído das máquinas. O rum da Madeira tem estatuto de Indicação Geográfica (IG), o que impõe que seja produzido a partir de sumo fresco de cana-de-açúcar e exclusivamente com cana cultivada na ilha. Isto contrasta com grande parte do rum produzido no resto do mundo, destilado a partir de melaço, geralmente proveniente de diversas origens. Para os Engenhos do Norte, isto significa que é necessário trabalhar rapidamente para que se consiga acomodar toda a cana que chega.
Lá dentro, o espetáculo faz lembrar uma cena saída de Willy Wonka. Os Engenhos do Norte garantem ser a única fábrica ainda em funcionamento na Europa movida a vapor, e grande parte do seu equipamento — rodas dentadas gigantes, correias transportadoras trémulas, tubos a deitar vapor — parece não ter mudado desde o dia da inauguração.
A cana-de-açúcar que chega é introduzida num engenho onde é esmagada. “A primeira prensagem é altamente concentrada em açúcar”, explica Carla, apontando para onde o líquido doce é desviado. A polpa clara que sai do outro lado é conduzida até outro engenho, onde é novamente desfeita, desta vez com água quente, numa tentativa de extrair o máximo de açúcar possível. A polpa de cana já esgotada é então transportada diretamente para camiões que aguardam no exterior do edifício, sendo depois utilizada na alimentação de animais.
O sumo de cana é bombeado para grandes cubas no piso superior do engenho, onde fermenta durante 48 a 52 horas – é esta a fonte do aroma emblemático. Quando uma parte suficiente do açúcar se transforma em álcool, este sumo alcoólico é destilado, num processo que envolve a fervura e condensação através de três torres com 7,5 metros de altura.
O resultado é um líquido que contém cerca de 75% de álcool e é conhecido como rum branco; será armazenado em depósitos de aço inoxidável antes de ser diluído com água para reduzir o teor alcoólico e engarrafado. Outra parte será transferida para barris de madeira, onde passará no mínimo três anos a ganhar a cor e o aroma da madeira, até ser vendido como rum envelhecido.
Carla acrescenta que, no ano passado, os Engenhos do Norte produziram cerca de 200 mil litros de rum; este ano, prevê-se uma produção de 150 mil litros. “Todos os anos pagamos mais pela cana-de-açúcar, mas recebemos cada vez menos”, diz-nos, atribuindo a quebra à falta de mão de obra. “O meu chefe diz que, daqui a cinco anos, talvez já não haja cana suficiente para esmagar.”
A cana-de-açúcar da Madeira passa por mais uma transformação durante esta altura do ano. Durante séculos, o sumo fresco deste vegetal tem sido fervido e reduzido a xarope, um líquido escuro e aromático a que se chama mel de cana.
Fundada em 1883, a Ribeiro Sêco é a mais antiga produtora de mel de cana na ilha. Na fábrica situada nos arredores do Funchal, a cana-de-açúcar recém apanhada segue, mais ou menos, os passos iniciais que vimos nos Engenhos do Norte: é esmagada e o sumo extraído. Contudo, a partir daqui, as etapas seguintes são completamente diferentes.
“O que queremos nós retirar da cana-de-açúcar? A água,” explica João Carlos Melim, a terceira geração de proprietários da Ribeira Sêco, hoje os únicos produtores de cana na Madeira. “Queremos fazer o mel de cana tão concentrado e puro quanto possível.”
Para o conseguir, o processo começa por coar, clarificar e ferver o sumo por três vezes. Com uma redução tão significativa, João Carlos diz-nos que são necessários 10 quilos de cana-de-açúcar para cada quilo de mel de cana. Para poder atingir este resultado, durante a colheita anual, a fábrica funciona 24 horas por dia. O produto final é um xarope escuro e perfumado, com uma textura mais leve e um sabor mais vivo e menos amargo do que o do melaço.
O mel de cana do Ribeiro Sêco é vendido em frascos de vidro e embalagens de plástico maleável em lojas por toda a ilha. Os habitantes também compram diretamente à fábrica, enchendo os próprios recipientes a partir de uma torneira e pagando ao quilo. Na Madeira, o mel de cana é utilizado como adoçante em bolos e bolachas típicos da região, sendo também regado sobre as malassadas durante o Carnaval.
“Neste processo, não usamos corantes nem aditivos,” explica Melim. “É cana-de-açúcar pura.” Uma prova da deliciosa versatilidade daquele que é o recurso mais antigo da Madeira.
Este artigo foi traduzido por Raquel Dias.
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